Traficantes destroem terreiros em nome de Jesus
- Dine Estela
- 6 de jun. de 2021
- 8 min de leitura
O documentário Fé e Fúria do cineasta Marcos Pimentel, lançado em 2019 no Festival de cinema do Rio aborda conflitos religiosos nas favelas do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte, relacionando o crescimento de igrejas neopentecostais e sua relação com os traficantes que comandam as favelas e tem causado prejuízos morais e materiais em favor destas associações que estão sendo privilegiadas em detrimento das religiões de matriz africana. “Fé e fúria” aborda a conduta dos “traficantes evangélicos” e revela como religião e o poder caminham juntos nas periferias das grandes cidades brasileiras e nas periferias.
A propagação da ignorância como verdade absoluta e a teologia da prosperidade disseminada pelas igrejas evangélicas que esta diretamente ligada ao dinheiro, são algumas das mensagens subliminares de estratégias muito utilizadas pelas igrejas neopentecostais para arrebanhar seus “exércitos de Jesus” e promover uma nova guerra santa no Brasil. A influência do neopentecostal é tão complexa que vai além dos conceitos de bom e mal, da premissa de fazer o bem e somente o bem, para fazer parte destas comunidades; e entender o porquê da quebra do respeito dos traficantes com as religiões de matriz africana parece tão fácil, quanto entender essa mesma falta de respeito em outras esferas da sociedade, principalmente entre os brancos e negros.
O documentário deixa bem clara essa reflexão da origem dessa intolerância religiosa, quando mostra a fragilidade das famílias, na falta de infraestrutura familiar, sem instrução educacional ou possibilidades. Vale ressaltar, que muitas crianças têm o primeiro contato com as letras através da bíblia e dos encontros bíblicos nas igrejas nos encontros dominicais e estes professores muitas vezes têm interpretações distorcidas da realidade da época em que foi contada a história bíblica, agregado ao discurso de oposição às diferenças que transforma estes aprendizes de religiosos em algozes da sociedade. Então todos que não agem de acordo com as premissas destas religiões neopentecostais, e o traficante é apenas mais uma vítima, desta sociedade doente, sejam oprimidos de todas as maneiras. Seja quando vai ao mercado vestido com suas roupas de santo, ou quando passa pela rua e leva uma pedrada só porque esta com estas mesmas roupas. Voltando às origens da colonização portuguesa que através do catolicismo, impunha que cultuar os elementos da natureza, era algo primitivo e que merecia evolução.
A professora Christina Vital da UFF trabalhou no processo inicial de pesquisa do filme e é a editora da revista Religião e Sociedade. ela destaca como pode ser pernicioso o fato de desqualificar a religião e a fé alheia para a manutenção do processo democrático de direito:
Lembro do chute na santa que o pastor da igreja universal deu no dia da padroeira do Brasil. Este momento foi impactante para a religião de um modo geral. Mostrar que cultuar santos de barro não leva a nada, como uma forma de desqualificar a fé alheia é um dos cúmulos do extremismo religioso.
O modelo episcopal de gestão das igrejas neopentecostais
Este estilo episcopal de gestão centralizadora, onde o líder define quem será o pastor de cada igreja e onde estas igrejas serão instaladas, entre outras inserções em várias esferas da sociedade, impressa pelo Bispo Edir Macedo da igreja universal, revela o modus operandi de impor sua autoridade religiosa como verdade suprema e essa intolerância é perpetuada quando essas igrejas inserem seus representantes dentro de vários setores da sociedade, polícia, escolas, política e até mesmo dentro do “poder paralelo” exemplificado no documentário através dos “traficantes de Jesus” levando seus conceitos distorcidos sobre certo e errado, liberdades individuais, entre outras questões de direitos civis.
Todas estas questões éticas e religiosas revelam um movimento cíclico de defesa dos direitos fundamentais: ir e vir, liberdade de culto, direitos básicos dos seres humanos como trabalhar e receber um salário justo pelo seu trabalho, independente de cor e gênero, direito de ter seus filhos de maneira digna, independente da cor da pele. Hoje, aos 133 anos da libertação dos escravos, homens e mulheres negras, travam uma luta constante em manter sua cultura respeitada.
As mensagens que os traficantes passam pelos seus rádios de comunicação com orações e citações bíblicas pedindo proteção a “Deus” antes de enfrentar os vermes (policiais) é algo que chama atenção para o pedido de proteção a um Deus que deveria primar pelo amor à vida de todos e não somente a deles, destacando o alto grau de distorção da realidade propagada por estes “traficantes de Jesus”, que em algum momento já foram pastores, ou ainda são, de ovelhas oprimidas pelos “vermes” que na verdade são policiais tentando resguardar os direitos dos cidadãos e não demônios como eles tentam passar para seus seguidores.
O documentário também revela de maneira velada, essa linha tênue entre o religioso e o tráfico. Nos faz questionar até que ponto este religioso faz parte do tráfico e o tráfico esta contido nestas religiões instaladas dentro das comunidades. Até onde vai esse “acordo de cavalheiros” entre manter uma religião neopentecostal nas vielas, em detrimento das religiões de matriz africana. Quem estaria por trás deste acordo, o pastor traficante ou o traficante de Jesus.
A marginalização das outras religiões, principalmente as religiões de matriz africana fica destacada na fala de um dos personagens do documentário, o pastor que diz que a pessoa não vai a uma igreja para fazer trabalho para roubar o marido de alguém ou fazer mal a alguém mas vai num terreiro de macumba, gerando o estigma de que macumba significa “fazer o mal”. A partir desta premissa, a menina Kailane ganha o título de “filha do demônio” e recebe uma pedrada ao andar de roupas de santo (roupas brancas) nas ruas, assim como a outra moça foi sacudida no supermercado pela funcionária ao dizer que ela não iria para o “céu” ou paraíso pregado por estas religiões e sim para o inferno.
A riqueza dos templos e a prosperidade do líder religioso como estratégias para arrebanhar fiéis
Mostrar aos fiéis que aquele templo é rico e seus líderes prósperos gera uma falsa esperança de que se os fiéis seguirem aquela doutrina também serão prósperos. A visibilidade destes templos e sua suntuosidade em espaços tão pobres funciona como um refúgio para os menos favorecidos que se sentem acolhidos nestes templos mesmo com toda aquela riqueza, afinal, onde mais estas pessoas tão humildes se sentiram tão à vontade, pregam estes líderes. Essa é uma mensagem subliminar a ser incutida nas cabeças dessas pessoas através destas práticas, na tentativa de diferenciação destes templos em relação a outros templos já existentes nas favelas, tudo isso fortalece seus trabalhos e agregam mais fiéis, atrelado ao fato triunfal de converter um grande traficante, que além de fortalecer os elos desta igreja com os líderes do morro, os caras que “protegem” de alguma maneira essa comunidade, ainda fortalece o capital financeiro e político deste segmento religioso, como destacou a professora Christina Vital. A professora remete a um passado não muito distante em que via-se muitos negros vendendo negros, “hoje sabe-se que quase 70% dos membros dos segmento neopentecostal é formado por mulheres e negros que atuam contra a sua própria cor e gênero”, lembrou.
O cineasta Marcos Pimentel, fala da dificuldade de flagrar os casos de intolerância e a necessidade de tratar a questão sob o ponto de vista das vítimas. Ele destaca ser um problema extremamente complexo de se solucionar porque é produzido por uma sociedade também complexa:
Pra mim era muito importante filmar os dois lados, sem desrespeitar o outro lado e deixar claro para as entrevistados que o filme tinha um lado sim, mas garantindo o direito de todos de se expressar, mas mostrar o quão violenta é a conduta de alguns líderes. Também me impactou como é normal para eles, alguns conceitos e expressões que para mim, são extremamente violentos como a questão dos religiosos de matriz africana serem chamados de bruxos, a líder evangélica que prepara a criança para a guerra, recrutando crianças para um “exército de Jesus”, instigando uma luta, uma briga por espaço de poder já no berço, algo neste caso, muito pernicioso e tratar a macumba como se a morfologia da palavra fosse Má (mau) cumba (feitiço). São condutas alienantes e alienadas.
Algumas questões ficam latentes como o fato das articulações insinuadas através de alguns depoimentos no que tange às formas de se garantir o espaço deste líderes religiosos dentro das comunidades através de um “acordo” com estes traficantes. O filme também apresenta uma reflexão: por que os terreiros ainda ficam escondidos nos fundos das casas, enquanto os templos religiosos estão cada vez mais suntuosos e marcando território. Por que as minorias de brancos e ricos ricos ainda se sobrepõem sobre uma maioria negra e pobre. A professora Christina Vital, alerta para o cuidado no termo fundamentalismo:
Essa expressão fundamentalismo estourou em 2003 e foi muito utilizada pela esquerda, mas o que retrata nossa realidade é o extremismo, que atua a partir da violência, diferente do fundamentalismo, movimento religioso e conservador, nascido entre os protestantes dos E.U.A. no início do século XX, que enfatiza a interpretação literal da Bíblia como fundamental à vida e à doutrina cristãs. As práticas de hoje em dia não são de fundamentalistas somente, mas de extremismo em tudo.
O fato de o segmento religioso neopentecostal expandir suas raízes em várias esferas da sociedade, é destacado no documentário pelo professor de mestrado e Doutor em história comparada pela UFRJ, o babalawo Ivanir dos Santos, ele observa o quanto essa prática é perniciosa para a sociedade. “Várias leis que reprimem ainda mais os negros e as religiões de matriz africana partem das bancadas evangélicas. Essa tem sido uma prática cada vez maior destas religiões de expandir suas raízes em várias esferas da sociedade”, observa o mestre.
Em seu artigo “13 de Maio - Por um bom tempo esse dia foi “comemorado” como um dia de libertação dos negros” o professor Ivanir dos santos destaca as manipulações de indivíduos políticos para continuar o extermínio ao negros e sua à sua cultura. “E cá entre os estudos e escritas, nós bem sabemos que a sociedade brasileira vive sobre a exaltação de um passado e de uma história colonial e, ainda hoje, usa todos os artifícios possíveis para marginalizar, invisibilizar e estigmatizar os corpos, culturas e tradições negras.
Conclusão
O documentário “Fé e Fúria” lançado pelo cineasta Marcelo Pimentel não poderia ter chegado em melhor hora para debelar distorções de realidade no que tange às liberdades individuais, diante de um aumento exacerbado das desigualdades sociais e principalmente educacionais, que vêm acontecendo desde 2020, muito por conta da pandemia da Convid-19, mas não somente por conta dela, mas que ajudou a retirar das escolas, as classes menos abastadas da sociedade, ou seja, os pobres, negros e mulheres. Se já era difícil para estas classes da sociedade se manterem informadas e com acesso à educação, mesmo que não fosse a educação mais adequada, nos últimos dois anos, ficou ainda pior; e os reflexos dessa desigualdade ainda esta por vir.
Essa sociedade atual não presenciou a dominação colonial que ocorreu de 1880 a 1935, também não assistiu a destruição do pluralismo religioso na África. A manutenção das religiões de matriz africana é uma luta secular diante de uma nova ordem mundial e isso não é de agora, vem desde a colonização africana e a cada século, a cada país, sob novos algozes revestidos de poder político e religioso.
A diminuição do acesso à educação, mesmo que não seja nos padrões ideais, consiste em grande perda social, haja vista, que assim como a expansão de várias religiões foi importante para o desenvolvimento humano, a extinção de tantas outras têm impactos negativos infindáveis. Vale ressaltar, que o direito de não ter nenhuma religião ou fé neste "Deus" apresentado por estas religiões tornou-se um perigo eminente.
Referências
Fé e Fúria. Direção de Marcelo Pimentel. Produção de Tempero Filmes. Brasil : Tempero Filmes, 2019. documentário (103’).
Santos , Carlos Alberto Ivanir dos . 13 de Maio - Por um bom tempo esse dia foi “comemorado” como um dia de libertação dos negros. Minha Baixada . Rio de Janeiro , 2021. Disponível em: https://www.minhabaixada.com.br/post/13-de-maio-por-um-bom-tempo-esse-dia-foi-comemorado-como-um-dia-de-liberta%C3%A7%C3%A3o-dos-negros. Acesso em: 14 mai. 2021.
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