Série: ESCRITOS HISTÓRICOS: O Queijo e os vermes onde tudo tem origem na putrefação e se finda nela
- Dine Estela
- 6 de set. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 13 de set. de 2021
O sexto artigo da série: ESCRITOS HISTÓRICOS narra a história de um moleiro italiano que foi executado pela inquisição
O Queijo e os vermes
“Tudo tem origem na putrefação e se finda nela”
Sobre o autor:

Carlo Ginzburg (1939-) é um historiador italiano, precursor da micro-história que se detém a contar a história de pessoas comuns, sem grandes feitos, gente que normalmente passa incólume pela vida. Ele é especialista em mitos, religião e crenças. Dentre seus livros mais famosos são Mitos, emblemas e sinais, Relações de força, Olhos de madeira e O queijo e os vermes. Neste último, o autor analisa de perto um processo de inquisição que encontrou num arquivo em que fazia pesquisa no século XVI.

O queijo e os vermes narra o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição (em italiano: Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del '500), é um livro do historiador judeu-italiano Carlo Ginzburg publicado em 1976. O livro apresenta as narrativas verossímeis de um moleiro de trigo, provavelmente produzido em suas terras (tinha dois arrendamentos), era italiano e também tinha conhecimento de marcenaria, carpintaria, pedreiro, entre muitas outras habilidades acima de sua classe social como ler em latim (porque ajudava nas missas). Domenico Scandella viveu no século XVI, em uma vila da Itália chamada vilarejo de Montereale, mais precisamente nas colinas do Friuli, fortemente influenciada pela pelo pároco, teve sete filhos, dos quais quatro faleceram.
Menocchio estava vivendo em plena Renascença Italiana, um período de grande desenvolvimento artístico e cultural de um modo geral, entre os séculos XIV e XVI em que a Itália foi considerada o “berço do Renascimento”. Este período marca a transição entre a idade média para a Moderna e a região Norte que compreendia ( Milão, Florença, Pisa, Siena, Gênova, Ferrara e Veneza) em que Menocchio vivia, estava sob grande prosperidade, em detrimento de outras regiões como o Sul da Itália que estava bem empobrecida. Um dos entendimentos dessa época foi a disseminação da língua (um latim) mais popular, que deveria ser levado ao conhecimento do público em geral. Outras línguas foram inseridas neste contexto, como o grego, revelando uma nova política de estudos humanistas.
O camponês presenciou a REFORMA com as ideias do monge alemão Martinho Lutero e a CONTRA-REFORMA que foi uma reação da igreja católica que perseguia insurgisse contra seu poder, através dos tribunais inquisitórios e ainda a invenção da imprensa. Além desses fatores relevantes para o seu levante contra o poder da igreja, ele ainda estava à sombra de outros grandes eventos históricos à época que foram: A Peste Negra, uma pandemia que acometeu ¼ da população européia, causando um dos maiores decréscimos demográficos da história. Cogitou-se na época que sua origem teria sido da China, assim como a atual pandemia da Covide-19, e da Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra que hora teve como vencedora a França, ora a Inglaterra e por último a França por influência de Joana D´Arc. No entanto, os embates continuaram a ocorrer. Mas além de tudo isso, ainda tinha de pano de fundo, movimento de reformulação cultural, inclusive religiosa vinda do campo. que Guinzburg vai chamar de “Reforma Popular”.
A curiosidade e o parco conhecimento de latim também o ajudaram a investigar e questionar o sistema injusto para ele e impetrado pela igreja católica que detinha muito poder sobre terras e riquezas naquela época. Mas os questionamentos que mais o prejudicaram foram as críticas à santidade de Maria, mãe de Jesus, ao próprio Cristo e a Deus, além de todos os dogmas da igreja católica como as indulgências, missas aos mortos e até mesmo os mandamentos de Deus como amai a Deus em primeiro. Ele questionava achava que o mandamento “amai ao próximo como a ti mesmo era mais importante do que amar a Deus, se baseando em uma passagem bíblica em que Jesus critica os homens por não dar de comer ao próximo, não visitar os enfermos e encarcerados e não ter misericórdia dos pobres. Para ele, quando Jesus dizia que era ele que estava na carne deste miserável e que ao negar ajuda a este, estaria também negando a ele, logo colocava o outro na posição de Deus, então amar ao próximo era como amar a Deus. Menocchio fez uma alusão ao surgimento de Deus e os anjos como oriundos de um caos (massa) que ele comparou a massa do queijo. Essa comparação não foi bem aceita pela Igreja de Roma:
Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela mesma massa, naquele mesmo momento, e foi feito com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael.(GINZBURG, 1996, p.40)
Quando Menocchio começou a disseminar suas ideias de que a origem da vida viria da putrefação, assim como acontece com o queijo, ele ganhou muitos inimigos. Até mesmo os mais próximos começaram a se aborrecer com suas ideias futuristas e heréticas. Em um dos processos ele declara acreditar que existisse uma Santidade superior a Deus e este teria então criado os anjos, mas todos oriundos de uma mesma essência (queijo). Com isso, ele questionava o poder de Deus e da igreja sobre os homens. O que o levou aos tribunais da santa inquisição ou do Santo Ofício como herege.
Além de todas as habilidades citadas acima, Menocchio também realizava com facilidades cálculos matemáticos e chegou a ser o administrador da paróquia de sua vila e auxiliava na organização das outras vilas ao redor, logo era uma pessoa muito respeitada por todos, afinal sabia ler, escrever e calcular, algo para além da classe social em que pertencia (classe baixa), já que apesar de ter terras para produção, estas não eram dele, o que o relegou à posição de um simples camponês, subalterno à burguesia, num sistema de feudos.
Mesmo com poucos arquivos neste sentido, é muito provável que ele tenha frequentado alguma escola, no entanto, Ginzburg não encontrou registros de sua passagem por escolas para comprovar essa teoria. Mesmo assim, Menocchio revelou-se um camponês muito letrado, tendo lido vários livros.
Ao contrário do dito filosofal de que o conhecimento liberta, para Menocchio, o conhecimento foi a sua desgraça. Por ter tido acesso a livros raros e alguns até proibidos pela igreja, inclusive a Bíblia em vulgar, Il Fioretto della bíblia, Il Lucidario della Madona, Il cavallirZuanne de Mandaville, Decameron, de Boccaccio, o Alcorão entre outras obras identificadas pelo autor, acredita-se que ela possa ter gerado uma nova opinião, principalmente sobre as regras episcopais e disseminado estas novas ideias, em vários locais da cidade como na taberna da vila, nos campos e até na feira, No entanto, não possível para Guinsburg identificar qual seria a religião na qual Menocchio estaria defendendo, se a dos Anabatistas ou a praticada pelos protestantes tradicionais daquela época, mas é certo que ele demonstra algum credo numa santidade maior até que o próprio Deus. Essa santidade que ele chamava de Espírito Santo seria o criador de Deus e de todos os anjos.
Menocchio parecia se identificar plenamente com os dogmas dos Anabatistas, grupo religioso que tinha como base o evangelho de Cristo e consideravam os escritos bíblicos como fontes altamente confiáveis, haja vista, que Menocchio acreditava que a bíblia poderia ter tido alguma inspiração divina mas que teria sido camuflada por teorias políticas de controle social e político. Já os protestantes também tinham a bíblia como base de sua fé, mas questionavam os dogmas católicos,
E por incrível que pareça, ele queria ser levado ao tribunal porque queria confrontar suas ideias com as autoridades, ingenuamente ou não, ele acreditava que poderia convencê-los de que estavam errados, além do mais, seus pares não se sentiam à altura de debater estes assuntos com ele, nem conseguiam ler ou entender o que se dizia nas missas, quanto mais, rebater.
Menocchio ficou encarcerado por 3 anos, até que um de seus filhos conseguiu por meios diversos uma espécie de segunda chance para seu pai, mas ele teria de usar uma túnica preta com uma cruz nas costas e não poderia voltar a blasfemar, nem sair da cidade. Ele aceitou as regras, saiu da prisão mas não cumpriu todas as exigências, principalmente o fato de não blasfemar e até mesmo usar a roupa preta com a cruz nas costas. Ficou livre por apenas dois anos.
Um homem com ideias à frente do seu tempo e que gostava de praticar o proselitismo. Como ele era uma pessoa muito ouvida na comunidade, lhe foi feita a proposta de desdizer tudo que pensava e declarar apoio incondicional à igreja e à crença no seu Deus, o que lhe livraria da morte, mas ele se recusou. Também recusou ser tratado como louco e nem mesmo um pedido de clemência dos filhos o livrou da fogueira. Sendo finalmente torturado e morto na fogueira em 1599, aos 67 anos, sob as ordens do Papa Clemente VIII.
Vale ressaltar que nenhum clérigo tinha autorização para executar um cidadão do reino. Quando havia a suspeita de crimes graves, o destino do acusado era decidido pela autoridade civil, isto é, por representantes dos reinos vinculados ao Sacro Império Romano-Germânico que aplicavam a execução, como a morte na fogueira.
Komentar