Série: ESCRITOS HISTÓRICOS: PARADIGMAS AFROCÊNTRICOS: INTELECTUAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA DA ÁFRICA
- Mariana Gino
- 30 de ago. de 2021
- 32 min de leitura
Atualizado: 28 de nov. de 2022

Mariana Gino é doutora em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em História Comprada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós- Graduada em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2012), bacharel em Teologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora/ PUC-MINAS (2011), bacharel em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013).Coordenadora da Coordenadoria de Experiências Religiosas Tradicionais Africanas, Afro-brasileiras, Racismo e Intolerância Religiosa (ERARIR/LHER/UFRJ). Atua nos seguintes grupos de pesquisa: “Modernidade, Religião e Ecologia” vinculada a (PUC-MINAS) e “Grupo de estudos Áfrikas” (UFJF) e no Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER/UFRJ). É pesquisadora Associada na Associação Brasileiras de Pesquisadores Negros (ABPN). Possui trabalhos apresentados e publicados nas diferentes áreas de formação humana. Atualmente dedica-se aos estudos sobre a Histórias das Áfricas. Autora do livro: Intolerância Religiosa no Brasil – Relatório e Balanço. Organizadores: Babalowô Ivanir dos Santos, Maria das Graças O. Nascimento, Juliana B. Cavalcanti, Mariana Gino e Vitor Almeida. Publicado pela Editora Kliné.
Resumo: A História da África da África Negra, até o início do século XX, era tida como um apêndice de referência à história europeia, circunscrita ao que concerne à histórica das grandes conquistas europeias, com o desenvolvimento marítimo do século XV, a escravização dos negros e translado para o continente americano e depois nos processos colonização após a Conferência de Berlim, realizada entre os anos de 1884 a 1885. O silenciamento sobre a existência de uma África antes do século XV e depois da colonização europeia parecia ser natural que qualquer tentativa de suposição histórica poderia ser interpretada como inverdade, falácia ou simplesmente invisibilidade. Assim, pensando em romper com as interpretações e análises simplistas, os historiadores africanos, imbuídos sobre o movimento denominado Afrocentrismo, propuseram a reescrita da história da África. A questão central era evidenciar a história do continente africano, a partir das experiências históricas dos próprios africanos. A ideia em si não era rejeitar as produções dos historiadores não africanos, mas sim colocá-las à prova à medida que não dão vozes para essa questão. necessidade se apresentou após as constatações de que o movimento afrocêntrico e as epistemologias Africanas são as chaves de compreensão para as reinvenções e políticas, sociais e intelectuais dos historiadores africanos na década de 1960. Assim, a célebre frase do historiador Joseph Ki-Zerbo (2010: 31), “A África tem História”, desponta como a ideia eixo que passou a guiar os trabalhos historiográficos de reescrita da História da África. Assim, o presente artigo tem por objetivo fazer uma brevíssima apresentação, definição e desenvolvimento do conceito de Afrocentricidade e Africana formulada pelos intelectuais afro-americanos, entre as décadas de 1950 a 1960, que se tornou o cerne do desenvolvimento da historiográfica africana. Palavras-chaves: afrocentricidades; africana; historicidade; historicidade; reescrita.
AFROCENTRIC PARADIGMS: INTELLECTUALS AND A WRITING FROM THE HISTORY OF BLACK AFRICA
Abstract: The history of Africa of Black Africa up to the beginning of the 20th century was a reference point for European history, limited to what concerns the great European conquests, the maritime development of the fifteenth century, the enslavement of the Blacks The silence on the existence of an Africa before the fifteenth century and after the colonization of supposition can be interpreted as untruth, fallacy or simply invisibility. Thus, thinking of simplistic interpretations and analyzes, African historians, imbued with the movement called Afrocentrism, proposed a rewriting of the history of Africa. A central era highlights a history of the African continent, from the state and African. The idea is not to reject like the productions of non-African historians, but rather the possibility of testing the measure of those who have no voice for this question. The same was presented as findings of froccentric movement and as African epistemologies, as the reinvention key and political, social and intellectual of the African historians in the 1960s. Thus, a famous phrase of the historian Joseph Ki-Zerbo (2010): 31) , "Africa has History", "History of Africa". Thus, the present article aims to present a brief 1Teologa (CES/JF), Historiadora (UFRJ), Esp. Em Ciência da Religião, Mestranda em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro da Associação de Pesquisadores Negros (ABPN), Coordenadora da Coordenador da Coordenadoria de Religiões Tradicionais Africanas, Afro-brasileira, Racismo e Intolerância Religiosa (ERARIR/LHER/UFRJ); Membro dos grupos de pesquisas ÁFRIKAS (UFJF) e Religião de Modernidade (PUC-MINAS), Laboratório de História das Experiência Religiosa (LHER/UFRJ). presentation, definition and development of the concept of Afrocentric and African formulated by the African-American intellectuals, between the decades of 1950 to 1960, that became the means of development of African historiography. Key-words: afrocentricities; african; historicity; renaissance; rewriting.
PARADIGMES AFROCENTRIQUES: INTELLECTUELS ET UNE ÉCRITURE DE L'HISTOIRE DE L'AFRIQUE NOIRE
Résumé: L'histoire de l'Afrique noire Afrique jusqu'au début du XXe siècle, il était une question de référence pour l'histoire européenne, limitée aux entreprises aux grandes réalisations européennes, avec le développement maritime du XVe siècle, l'esclavage des Noirs et traduit Le silence sur l'existence d'une Afrique avant le XVe siècle et après la colonisation de la supposition peut être interprété comme un mensonge, une erreur ou simplement une invisibilité. Ainsi, en pensant à des interprétations et à des analyses simplistes, les historiens africains, imprégnés du mouvement appelé Afrocentrisme, ont proposé une réécriture de l'histoire de l'Afrique. Une ère centrale met en lumière une histoire du continent africain, de l'état et de l'Afrique. L'idée n'est pas de rejeter comme les productions des historiens non africains, mais plutôt la possibilité de tester la mesure de ceux qui n'ont pas de voix pour cette question. La même chose a été présenté comme mouvement frocêntrico résultats et comment l'épistémologie africaine, comme la réinvention et politique, social et intellectuel clé des historiens africains dans les années 1960 Ainsi, une phrase célèbre de l'historien Joseph Ki-Zerbo (2010): 31) , "L'Afrique a l'histoire", "Histoire de l'Afrique". Ainsi, cet article a pour but de présenter une brève présentation, la définition et le développement du concept de formulation afrocentrique et africaine par les intellectuels afro-américains, entre les décennies 1950-1960, qui est devenu le moyen de développement de l'historiographie africaine. Mots-clés: afrocentricités; african; historicity; renaissance; rewriting.
PARADIGMAS AFROCÉNTRICOS: INTELECTUALES Y UNA ESCRITURA DE LA HISTORIA DE ÁFRICA NEGRA
Resumen: La historia de África de África Negra, hasta principios del siglo XX, era una cuestión de referencia para la historia europea, circunscrita a lo que interesa a las grandes conquistas europeas, con el desarrollo marítimo del siglo XV, la esclavización de los Negros y Translated para el Continente Continente y 18 months ago en 1886. El silenciamiento sobre la existencia de una África antes del siglo XV y después de la colonización de suposiciones puede ser interpretada como invertidumbre, falacia o simplemente invisibilidad. Así, pensando en interpretaciones y análisis simplistas, los historiadores africanos, imbuidos sobre el movimiento denominado Afrocentrismo, propusieron una reescritura de la historia de África. Una era central evidencia una historia del continente africano, a partir de las estatales y africanas. La idea no es rechazar como las producciones de los historiadores no africanos, sino la posibilidad de probar la medida de las que no tienen voz para esa cuestión. La misma se presentó como constataciones de movimiento frocéntrico y como epistemologías africanas, como la clave de reinvención y políticas, sociales e intelectuales de los historiadores africanos en la década de 1960. Así, una célebre frase del historiador Joseph Ki-Zerbo (2010): 31) , "África tiene historia", "Historia de África". Así, el presente artículo tiene por objeto presentar una breve presentación, definición y desarrollo del concepto de afrocéntrica y africana formulada por los intelectuales afroamericanos, entre las décadas de 1950 a 1960, que se convirtió en el medio de desarrollo de la historiografía africana. Palabras-claves: afrocentricidades; africana; historicidad; renacimiento; reescritura.
Este artigo cièntifico foi publicado originalmente na Revista da ABPN • v. 10, n. 25 • mar – jun 2018, p.248-270 DOI 10.31418/2177-2770.2018.v10.n.25.p248-270
AFROCENTRICIDADE COMO POSSIBILIDADE DE ABORDAGEM HISTÓRICA
O movimento de Reescrita da História da África Negra, singular importância para os movimentos negros, foi construído pelos intelectuais africanos em meados do século XX. As bases epistemológicas que possibilitaram essa renovação intelectual e política, foram desenvolvidas no final do século XIX por intelectuais afro-americanos, que passaram a questionar ferrenhamente o modo como os intelectuais brancos europeus e norte-americanos se apropriaram da prerrogativa de escrever a história de todo o resto do mundo, sem dar voz às histórias e culturas dos povos antigos africanos e indígenas.
A ideia de superioridade cultural e histórica foi por um longo tempo, perpetrada principalmente nos grandes centros educacionais do continente europeu e nos Estados Unidos, onde era formado boa parte das intelectualidades afro-americanos e africanos. Entretanto, foi tomando conhecimento da forma como eram construídas e fomentadas as perspectivas sobre o continente africano e sobre população diaspórica negra – cuja boa parte ainda vivia nas Américas e no Haiti e Caribe na condição de escravos – que intelectuais como Louis-Joseph Javier, Hannibal Price, AténorFirman, Alexander Crummell e outros, começaram a delinear os primeiros ensaios sobre as experiências dos negros na história, cujo objetivo era evidenciar as contribuições africanas para a construção da história mundial e evolução da humanidade.
O conceito de afrocentricidade, que deriva de todas as perspectivas intelectuais negras em oposição à hegemonia intelectual branca, foi construído e delineado por MolefiAsante, e desenvolvido como possibilidade de trabalho e investigação acadêmica no século XX. Finch III & Nascimento (2009) sustentam alguns marcos simbólicos da praticada afrocentricidade nas Américas.
O primeiro marco simbólico é a cerimonia de voudou, em 14 de agosto de 1791. A cerimônia religiosa, conduzida pelo sacerdote BoukmanDutty e pela sacerdotisa CécileFatiman no Haiti, desencadeou uma grande insurreição com mais de cinquenta mil pessoas, que tomaram a região de Plaine duNord e ligaram a rede de resistência que deflagrou uma das maiores revoltas contra a dominação colonial eurocêntrica e representou o engajamento definitivo dos negros na luta pela independência. Na ocasião, “foi selado pacto de sangue pelo qual os escravos comprometiam-se a exterminar os brancos e a criar uma comunidade autônoma” (Hurbon, 1987, p. 69).
A revolta no Haiti, durante a cerimônia religiosa voudou, possibilitou uma visibilidade para a presença da matriz africana e passou a inspirar a luta anticolonial nas Américas, bem como a revolução liderada por Jean-Jacques Dessalines e ToussaintLouverture. Além da libertação do jugo colonial, os intelectuais haitianos passaram a se preocupar com a necessidade imediata de independência e produção acadêmica voltada para as questões antirracistas. Assim, podemos identifica duas perspectivas da afrocentricidade que aos poucos começavam a ser desenhadas no Haiti: a perspectiva religiosa, ligada a matriz africana, ao culto aos ancestrais, e a perspectiva ligada a produção feita por autores negros, que sabiam com maestria dominar as ferramentas e os códigos da academia ocidental para se engajarem em análises autênticas contra o racismo, a escravidão humana e o colonialismo.
Entretanto, mesmo se valendo de princípios descolonizadores, Finch& Nascimento (2009: 40), observam que havia uma grande ambiguidade nas produções intelectuais dos negros haitianos. Segundo os autores:
À medida que os intelectuais afrodescendentes formados na academia ocidental se afastam de suas matrizes culturais de origem, podem assumir um discurso eurocentrista com relação a elas. Podem articular ideias originais e contribuir com grandes obras, mas a hegemonia ideológica lhes impõe a falta de ponto de equilíbrio, de um centro. (Finch III; Nascimento, 2009:40).
Mesmo assumindo um posicionamento totalmente novo, os discursos de desvalorização produzidos pela academia ocidental foram, de certa forma, absorvidos por muitos intelectuais afro-americanos que pendenciavam entre a escrita revolucionária afrocêntrica, que denunciava o domínio colonial e escravista mercantil, e o discurso antirrevolucionário, que lhes recaia como um ato de selvageria. O segundo marco simbólico são as publicações das experiências e depoimentos elaborados por africanos que viviam nas fazendas coloniais inglesas nos Estados Unidos sobre a condição de escravos, no século XVIII. Essas publicações pleiteavam melhores condições de trabalho e a indenização dos africanos que sofreram danos com o holocausto da escravidão mercantil. A experiência de escrever suas angústias, anseios e revoltas sobre o processo escravista deu aos escritores afro-americanos uma grande notoriedade e vislumbrou uma das primeiras possibilidades de se tornarem escritores de suas próprias histórias.
Muitos desses escritores eram autodidatas ou haviam aprendido a educação ocidental dentro dos ambientes de cativeiro, e nunca conseguiram publicar por não haver interesse das editoras da época, pois escrever para os negros, aos olhos da sociedade ocidental, era um ato subversivo e ousado.
O século XIX marca a urgência da causa da abolição do trabalho escravo, algo que passou a ocupar a intelectualidade negra de Cuba, com a construção do Partido Independente de Cor (PIC), e no Caribe onde teve início os primeiros lampejos do pensamento pan-africano. Os intelectuais pan-africanistas, caribenhos e norteamericanos, passaram a se destacar dentro do pensamento afrocêntrico, e contribuíram para a formulação de conceitos, como nação negra, para o fortalecimento da ideia do nacionalismo negro e para o retorno às raízes africanas.
A ideia de retorno à África e o fortalecimento de luta contra o racismo e a segregação política e social contagiou o sindicalista jamaicano Marcus Garvey. Fundador da Associação Unida pela Melhora do Negro (UNITA), Garvey, se tornou um dos principais e mais importante membro do nacionalismo pan-africanista e junto com William Edward Burghard (W.E.B.) Du Bois, que nasceu em nasceu em 1868 de uma família de Massachusetts e morreu em Gana em 1963, aos 95 anos, encabeçou a liderança da I Congresso Pan-africano, realizado em Paris, em 1919. O congresso, que surgiu como mote contra a expropriação e exploração das terras dos negros sulafricanos pelos europeus, conclamou o direito dos negros à sua própria personalidade e acentuou que o racismo seria um problema central no século XX.
O pensamento pan-africanista2 começou a ser esboçado ainda no século XVIII com a ideia de estabelecer metas educacionais e de capacitação profissionais para os negros recém- emancipados nos Estados Unidos. Universidades como Fisk e Howard eram instituições de ensino superior, marcadamente, negras. E foi em Fisk, que Du Bois teve os seus primeiros contatos com o pensamento e as práticas afrocêntricas.
--------------------------------------------
² O termo Pan-africanismo foi cunhado por Sylvester Willians, advogado negro de Trinidad, durante uma conferência de intelectuais negros realizada em Londres, em 1900.
Du Bois, que até hoje é um dos maiores ícones do movimento afrocêntrico panafricanista, fundou a Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP), que posteriormente se tornou o Movimento Niagara, pioneiro na luta política, em que editou várias revistas com o tema sobre a necessidade de um renascimento histórico e intelectual afro-americano e africano. Um de seus livros, O Mundo e a África publicado em 1946 e reeditado pela editora InternationalPublishers em 1965, teve uma forte influência sobre a geração posterior de intelectuais negros afro-centrados, sendo um destes intelectuais o professor e historiador Joeph Ki-Zerbo.
A década de 1960 iniciou o movimento de reescrita da história da África. KiZerbo trabalhou, em caráter oficial e informal, com muitos dirigentes do projeto de independência africana, entre os quais KwameNkrumah, Sékou Touré, Frantz Fanon, ModiboKeita, Amílcar Cabral, JomoKenyatta, Tom Mboya, e participou em todos os debates importantes sobre o futuro do pan- africanismo quando da independência, assim como nas reflexões sobre as escolhas de desenvolvimento que o continente poderia explorar.
Outro movimento afrocêntrico e, que igualmente foi determinante na influência no movimento de reescrita da História Negra Africana, de extrema importância para o século XX foi, o Movimento Negritude que atuou principalmente no campo da literatura, promovendo a valorização das línguas nativas como fontes para a construção das identidades, da política e das afirmações das identidades negras e faz referências africanas.
O Negritude teve como principal objetivo conceber forças e alianças anticoloniais urbanas com as populações camponesas afim de promover a consciência da história africana e resistências nacional sobre os aspectos pan-africanista. O movimento haitiano, liderado por Jean Price-Mars, e que ganhou contornos e cenários internacionais, ainda teve em AiméCésarie e Franz Fanon da Martinica, Leon Gontran Damas, da Guiana e Léopold Sedar Senghor as principais vozes que ecoaram na União Intercolonial fundada em 1914, com o objetivo de promover ações, principalmente nos países colonizados dos continentes africanos e asiáticos.
Tanto o movimento pan-africanista como o movimento Negritude, nasceram na virada do século XIX para o século XX. Ambos foram marcados pelos debates que giravam em torno não só do processo de descolonização, mas também sobre a II Guerra Mundial e o crescimento do nazismo na Europa. No continente americano, principalmente nos Estados Unidos, a atuação de Martin Luther King, com sua perspectiva integracionista, e o Movimento Black Power, sobre a figura de Malcon X, avivaram o nacionalismo negro, que já existia de forma pouco conhecida, mas que ganhou destaque sob a liderança de StokelyCarmichel, AmiriBaraka, Larry Neal.
O nacionalismo negro tinha como enfoque a independência ideológica em relação às correntes europeias estabelecidas no campo social e político. Um dos objetivos era articular uma cultura política afirmativa, voltada para a promoção da importância dos valores africanos como referência para recuperar as identidades africanas desvinculadas dos processos escravistas e coloniais. Por essas razões, as ligações entre as lutas políticas na Jamaica, Caribe, Martinica, Haiti e Estados Unidos com os países africanos permeou, entre as décadas de 1960 a 1970, boa parte do ativismo negro de orientação marxista dentro e fora dos espaços acadêmicos.
E é justamente entre as décadas de 1960 a 1970, que o intelectual afro-cubano Carlos Moore faz ferrenhas críticas ao marxismo, ao afirmar que mesmo a luta de classe não resolveria as questões do preconceito assimétrico, com base na cor da pele, construído e proliferado durante as colonizações e dominações europeias. Assim, Moore, que atuou como etnólogo em parceria com Cheikh Anta Diop e no movimento Negritude ao lado de AiméCesaire, amplia o debate sobre os movimentos negros e coloca em questão as alianças que foram estabelecidas com os partidos e movimentos políticos de orientação marxista que relegavam a questão racial ao terceiro plano, ou simplesmente não possibilitavam colocar a questão racial como um problema de inferência social, política e econômica.
A crítica feita por Carlos Moore reverberou além das fronteias geográficas cubanas. No princípio da década de 1970, essas críticas chegaram ao campo acadêmico, principalmente dentro das áreas dos estudos africanos, que desde então eram meramente dominados, em grande parte, por estudantes e pesquisadores brancos.
Assim, pesquisadores afrodescendentes construíram uma política articulada entre várias frentes negras acadêmicas e criaram programas de Black Studies, AfroAmerican Studies e Africana Studies (Alfrigdes; Young, 2000). Os Estudos Africanos, a mais nova área acadêmica construída pelos intelectuais negros, foi definida por Robert L. Harris Jr. (2004:15) como “análises multidisciplinares da vida e do pensamento dos povos de ancestralidade africana no continente africano e no mundo”.
Os esforços monumentais para dar vida e corpo às interpretações propostas na área de estudos africanos foram definidos durante as Convenções da Associação de Estudos Africanos (ASA), realizada em 1968 na cidade de Los Angeles, e posteriormente na cidade de Montreal no ano de 1969. Onde surgiram também os principais conflitos entre os historiadores negros e brancos, ao que diz respeito à legitimidade das interpretações sobre as histórias, culturas e tradições dos povos africanos.
Para um dos maiores expoentes da Associação dos Estudos da Herança Africana (AHSA), o historiador JonhHenrik Clarke (1976:05), a questão: “É sobre quem vai interpretar a história africana. Os estudiosos bancos, mas que os negros, sempre entenderam a importância de controlar o pensamento histórico e social. A melhor maneira de controlar um povo é controlar o que ele pensa sobre si mesmo”. (Clarke, 1976:05).
Jonh Henrik Clarke foi um dentre os vários historiadores afro-americanos que romperam com a ASA, afim de criar uma associação para que os intelectuais negros pudessem protagonizar e definir suas abordagens e metodologias de pesquisas dentro do campo de estudos africanos sobre o viés Africana. Desta forma, a AHSA passou a exercer um papel definidor e acolhedor dentro deste campo de estudo, colocando a herança africana, e a cor da pele, como chavesde demarcação diferencial. O objetivo principal da AHSA era fomentar pesquisas e estudos que pudessem evidenciar as experiências dos povos africanos antes da chegada dos colonizadores.
As lutas nos espaços institucionais acadêmicos foram além da criação da disciplina específica no campo da História. Além de uma ampliação interdisciplinar de abordagens acadêmicas sobre o tema, na década de 1980 os estudos Africana ganharam cursos strictu senso específicos. No mesmo período, Molefi K. Asante publicou o livro Afrocentricidade: a teoria de mudança social.
A palavra Africana, escrita com letra maiúscula, não faz oposição ao termo africano. Africana, indica, antes de tudo, “dois aspectos: refere-se aos povos afrodescendentes em todo o mundo e à metodologia multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar do estudo neste campo” (Nascimento, 2009: 33), e passou a guiar as formas epistemológicas de conceber o pensamento dos intelectuais afro-americanos e africanos.
As bases epistemológicas desenvolvidas pelo autor na obra, ainda faz parte do primeiro programa de doutorado em estudos afro-americanos, na Universidade Temples, que tem uma longa tradição na formação de intelectuais negros e negras nos Estados Unidos. O programa de doutorado engloba o Encontro Nacional Cheikh Anta Diop de estudos Africana, que ainda é um dos maiores fóruns acadêmicos e interdisciplinares sobre o pensamento afrocêntrico.
RENASCIMENTO AFRICANO COMO AÇÃO INTELECTUAL
As inquietações intelectuais provocadas pela AHSA, sobre como os intelectuais brancos europeus e norte-americanos interpretavam e escreviam sobre o continente africano, dar voz nas produções e pesquisa de Cheikh Anta Diop, que deu início ao projeto intelectual de mudança de paradigma maneira de estudar a África, proporcionando não apenas novos modelos de investigação, mas também novas disciplinas dentro das produções acadêmicas africanistas.
Considerado com um dos maiores intelectuais do século XX, Cheikh Anta Diop, de origem senegalesa, era “descendente direto de Cheikh Amadou Bamba, fundador do Movimento islâmico Mouride” (Finch III, 2009:72). Mesmo criado dentro de uma atmosfera totalmente religiosa, ele se afastou dos assuntos religiosos e foi estudar na Universidade de Paris, onde se doutorou em física. Motivado pelas preocupações acerca dos movimentos de independência dos países africanos e as propostas colocadas pelos intelectuais afro-americanos e africanos sobre as necessidades de novos paradigmas e investigações acadêmicas sobre as temáticas das populações negras africanas e diaspóricas.
Diop procurou se aproximar dos estudos Africana e se especializar no campo da história para que melhor pudesse contribuir nos processos das construções epistemológicas. E foi no campo da egiptologia, que o Cheikh Anta Diop fez as suas melhores contribuições ao estudar e demonstrar, que diferente do que antropólogos e arqueólogos propunham sobre a ideia de civilização egípcia, marcadamente branca e deslocada do continente africano, o Egito foi o maior império negro africano.
Para explicitar suas teses, Cheikh Anta Diop tomou como pressuposto os textos escritos a partir do ano 610 a.C., pelos filósofos gregos Tales, Sólon, Anaxímenes e Platão, que descrevia a civilização egípcia como uma civilização negra tal como o Cush. Desta forma, o autor derrubava, também, a ideia proliferada no século XIX de que embora o Egito se situasse na África, ele não pertencia à África e seria fruto da criação de uma raça não-africana originária na Ásia.
A intenção de Cheikh Anta Diop era defender e apresentar a tese sobre o enegrecimento do Egito, entretanto, ele foi sumariamente impedido, pois as questões abordadas em seu trabalho, sobre o enegrecimento do Egito, colocam em questão a veracidade das construções históricas europeias ao que concerne a história do embranquecimento das populações egípcias. O referido autor conseguiu publicar a sua tese pela editora PrésenceAfricaine sob título Nationsnègres et cultures. A publicação lhe proporcionou estar à frente da disciplina de egiptologia na Universidade de Paris.
Entre os anos de 1959 a 1967, publicou o pioneiro livro Unidade cultural da África Negra, um dos seus grandes trabalhos, que propunha uma abordagem analítica sobre as histórias e culturas africanas. E é justamente neste período, contextualizado pela independência do Senegal, que o professor Diop e o presidente do país, na época LéopoldSédarSenghor, protagonizam um dos maiores confrontos ideológicos.
LéopoldSédarSenghor, que foi um dos grandes expoentes do movimento Negritude, ao assumir a presidência do Senegal, se colocou como instrumento dos interesses neocoloniais franceses. Cheikh Anta Diop, que era um dos grandes membros do nacionalista africano, se opôs de forma irredutível ao posicionamento político de Senghor. Sobre essa questão o historiador Boubacar Barry (2000: 22), nos diz que:
Cheikh Anta Diop é o primeiro, em sua obra, Nationsnègres et cultures, publicada em 1955, a fundar sua ação política no reconhecimento da historicidade da África, que remonta à origem das civilizações – pois o Egito é negro. Cheikh Anta quer devolver aos africanos uma confiança neles mesmos. A reconstrução da história africana abre a África ao universal pelo Egito faraônico e a afirmação da unidade cultural africana legitima seu panafricanismo e seu federalismo. Por sua preferência pela África pré-colonial, opõe-se a Senghor, pelo período colonial. Mas, como Senghor, Cheikh Anta Diop negligenciou as tradições orais e os estudos monográficos que não se inscrevem no desenho egípcio-faraônico, dando consequência à unidade cultural do continente. Assim a África toma pé na história pela grande porta e Cheikh Anta Diop privilegia a continuidade dessa história: é por isso que põe em evidência as semelhanças entre as instituições da África pré-colonial e as do Egito antigo. (Barry, 2000:22).
O posicionamento e as atitudes politicas de Cheikh Anta Diop, a favor do rompimento com o sistema colonial, levaram-no à prisão durante o governo de LéopoldSédarSenghor. Mas suas influências dentro dos círculos intelectuais negros eram tão intensas, dentro e fora do Senegal, que ele ficou por muito pouco tempo preso. Diop estava obstinado a apresentar e levar as teses “sobre o povoamento negro do Egito e suas influências nas demais civilizações” (Finch III, 2009: 75), para o campo acadêmico como forma de promover o renascimento da histórica Africana, o professor Cheik Anta Diop. Charles S. Finch III (2009:76-77) aponta oito eixos principais das teses de Cheikh Anta Diop, que tiveram grande ressonância como perspectiva de investigação histórica afrocentrada.
1. A Humanidade começou na África e, segundo o modelo monogenésico da origem humana, todas as outras raças emergiram relativamente tarde como do tronco africano em função de mudanças climáticas e ambientais ocorridas em várias partes do mundo durante a última Era Glacial. 2. O Antigo Egito foi uma civilização negro-africana em todos os aspectos essenciais, desde o período pré-histórico até a conquista romana no ano de 30. A. C. 3. A origem dos povos Africanos Ocidentais remonta o vale do rio Nilo, e essa marca original, embora tenha sido alterada, jamais desapareceu. 4. O mundo semita é uma fusão de imigrantes caucasoides ou arianos com negros autóctones já estabelecidos na Ásia Ocidental que não começou antes de 5000 a.C. 5 Houve dois berços do desenvolvimento humano nos tempos pré-históricos: o berço do sul e o berço do norte do sul, onde teve inicio a civilização, como exemplificam as civilizações negras da África (Egito e Cush), Irã (Elam), vale do rio Indo (Harappan) e Suméria mesopotâmica, a agricultura atingiu elevado grau de desenvolvimento. As estruturas clânicas e sócias eram altamente matriarcais, caracterizadas por ênfase na solidariedade familiar, harmonia e cooperação intergrupais, ligação estreita com a natureza e primazia da mulher em todas as esperas da vida. Em contraste, o berço norte, em função da hostilidade ambiental, apresentou maior lentidão no desenvolvimento da agricultura e da civilização. Surgiram sociedades nômades e pastoris, criando a competição por pastagens e recursos hídricos e promovendo a ênfase nas habilidades masculinas de pastorear lutar e montar a cavalo. O valor e o papel das mulheres eram decididamente inferiores, essas culturas se tornaram rigidamente patriarcais. Com a aproximação dos tempos históricos, desenvolveu-se entre esses dois berços uma zona de influência que exibia influência de ambos. 6. A ciência, a medicina, a filosofia, a arquitetura, a engenharia e arte civilizada surgiram, primeiro no vale do rio Nilo e acabaram sendo transmitidas pelos minoicos (Creta) à Grécia continental, estimulando a ascensão da civilização no norte mediterrâneo 7. Os reinos pré-coloniais da ÁFRICA Ocidental desenvolveram sistemas de governo e formas de organização social altamente sofisticadas que permaneceram até o século XIX. 8. Há uma unidade cultural entre toda a África Negra, apesar de diferenças e variações superficiais entre as diferentes sociedades. (Finch III, 2009: 76-77).
Cheikh Anta Diop produziu um grande volume de textos voltados para a ideia do renascimento africano. Em grande parte, os seus textos tinham por objetivo promover e comprovar as suas principais teses, aqui já citadas, a fim de fomentar o ideal de que o continente africano poderia produzir uma reconstrução plenamente comparável à Europa, conforme“o exemplo dos europeus medievais e retornar ao manancial da história cultural africana para reviver, reavaliar e reconfigurar os valores culturais fundamentais.” (Finch III, 2009: 77), que se tornaram as principais bases da grandiosidade da civilização africana.
A ideia de renascimento, alicerçada pela cultura africana, fundamentadas nos desejos reviver, reavaliar e reconfigurar as experiências históricas das civilizações negras no continente, foi o mote principal para a construção do projeto da Coleção Geral da História da África (HGA). Como veremos no capítulo seguinte, a coleção HGA, foi o somatório dos empenhos acadêmicos dos intelectuais africanos em produzir textos substanciais, que pudessem evidenciar as experiências das civilizações africanas nos contextos históricos.
Dividia em oito volumes, o HGA traz uma análise progressista da história africana. Por essa razão, a ideia de escrever a história dessas experiências negras da préhistória até os dias atuais se mostrou um dos maiores desafios para o projeto do renascimento histórico propostos de Cheikh Anta Diop, entre as décadas de 1950 a 1970, e que ganhou vozes na década de 1980 quando a UNESCO lançou o projeto.
AEVOLUÇÃO DO CONCEITO DE AFROCENTRICIDADE NOS ESTUDOS AFRICANA
A ideia de renascimento africano permeou boa parte dos textos e discursos dos intelectuais negros africanos. Tal ideia, só se tornou possível a partir dos primeiros anseios epistemológicos propostos pelos intelectuais afro-americanos como prática política e de ensino, tendo em vista a criação das universidades estadunidenses, ainda no século XIX, voltadas para a formação de homens negros e suas inserções com as culturas e tradições do continente africano.
Molefi K. Asante (2009:93) define a ideia de afrocentricidade como sendo algo que:
Refere-se essencialmente à proposta epistemológica do lugar. Tendo sido os africanos deslocados em termos culturais, psicológicos, econômicos e históricos, é importante que qualquer avaliação de suas condições em qualquer país seja feita com base em uma localização centrada na África e suas diásporas. (Asante, 2009:93).
Desta forma, voltar os olhos para o continente, passou a ser o primeiro pressuposto para construir um renascimento africano. Assim, Asante coloca que “a afrocentricidade é um dos tipos de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com os seus próprios interesses humanos” (Asante, 2009:93).
O desejo implícito era colocar a narrativa dos intelectuais negros africanos e diaspóricos em primeiro plano e evidenciá-las como legítimas e pendentes nos campos interdisciplinares acadêmicos. Pois, até então todas as produções que haviam sido produzidas ao que concerne a história, a cultura, a literatura, a linguística, a política e a economia africana foram fabricados sobre o ponto de vista e dos interesses dos países europeus, e sustentou por um longo tempo os processos de escravização dos negros e o colonialismo sobre o continente africano.
Sobre essa questão, ChinuaAchebe, em seu livro A educação de uma Criança sob o Protetorado Britânico (2012:83), pontua a diferença e apresentação da África como um lugar estrangeiro para os europeus, apesar do contado entre os dois continentes é uma das explicações para a exploração dos africanos, diz o referido autor que:
Esse problema de imagem não tem origem na ignorância, como as vezes somos levados a pensar, pelos manos não apenas na ignorância, e nem mesmo principalmente na ignorância. Foi, grosso modo, uma inversão deliberada, concebida para facilitar dos gigantescos eventos históricos: o tráfico transatlântico de escravos e a colonização da África pela Europa, com o segundo evento seguido de perto o primeiro, e os dois juntos se prolongando por quase meio milênio desde a aproximadamente 1500 d.C. (Achebe, 2012:83).
Esses pontos de vistas foram definidos por Asante como ideias periféricas e marginais e afetaram tanto os negros quanto os brancos, que colocaram a cultura branca europeia como a única possibilidade para os processos de sociabilização no mundo (Asante,1998). Desta forma, a afrocentricidade surgiu como um grande processo de conscientização política “de um povo que existia à margem da educação, da arte, da ciência, da economia, da comunicação e da tecnologia tal como definidas pelos eurocêntricos” (Asante, 2009: 94). Um dos objetivos maiores da afrocentricidade é promover a África como um centro é promover a descolonização intelectual, para a construção das identidades negras e “libertação da mente dos africanos” (Asante, 1998;2009). A fim de combater a falta de consciência e conhecimento sobre o continente africano. Para Molefi K. Asante (2009), a consciência está no cerne da ideia e na prática da afrocentricidade:
A ideia de conscientização está no centro da afrocentricidade por ser o que torna diferente da africanidade. Pode-se praticar os usos e costumes africanos sem por isso ser afrocêntrico. Afrocentricidade é a conscientização sobre a agência dos povos africanos. Essa é a chave para a reorientação e a recentralização, de modo que a pessoa possa atuar como agente, e não como vítimas ou dependente. (Asante, 2009:94).
Assim, ao fazer a diferença entre afrocentricidade e a africanidades, Asante pontua que a prática da africanidade pode ser realizada por qualquer pessoa, independente dos vínculos políticos e ideológicos. O conceito de africanidade foi apresentado por AzoildaLoretto da Trindade (2010: 21-22) como sendo a ideia e as práticas dos valores civilizatórios africanos:
ENERGIA VITAL (Potencia de Vida) - a energia cósmica, física, terrestre, animal, humana que nos integra a Existência. CORPOREIDADE- a valorização dos corpos, inclusiva os não humanos, inclusive os invisíveis, como produtos e propagadores ou interruptores da energia vital. RELIGIOSIDADE- relevância do sagrado, do imanente. ANCESTRALIDADE- esta intransferibilidade, esta singularidade é tão grande que os seres se transformam em ancestrais seres anteriores e nós que nos legaram a existência, as condições materiais e espirituais de existências e por isso transcendem em nós e no mundo. ORALIDADE- o valor da palavra, da expressão oral da capacidade humana de se comunicar entre si e como mundo. MEMÓRIA- importância da vivencia e da experiência impressa nos corpos, no mundo. TERRITORIALIDADE- valorização do território, do espaço vital, do terreiro como marca do campo existência, do local de expansão e renovação da energia vital. LUCIDADE-valorar o prazer, a diversão, a celebração, o festejo, o comer, o beber, o amar, o ser e o estar. CIRCULARIDADE- a roda, o círculo, o circular tem uma pregnante presença nas manifestações de matrizes africana, MUSICALIDADE- sagrada com o sem instrumento, conecta-nos com todo o cosmo, como todo o sagrado e com nossos iguais. COMUNISTARISMO/COOPERATUVIDADE- união entre descendentes de africanos e africanos trazidos para esta terra [Brasil] em condições desfavoráveis de existência e sobrevivência. (Trindade, 2010:21-22).
Apresentada as diferenciações entre as ideias de afrocentricidade e africanidade, podemos observar que a afrocentricidade é apresentada com a existência de um senso de coletividade em função de seus interesses revelados na experiência comum do mundo. Enquanto que a ideia de afrocentricidade coloca em questão os controles hegemônicos da economia global, os processos de marginalização social e lugares de poder que constituem a chave para entender o subdesenvolvimento econômico dos povos africanos.
Por essa razão, a afrocentricidade desponta como uma ação de descolonização intelectual e prática de diálogo intra e extra acadêmico. Ao analisar o conceito de afrocentricidade com uma nova proposta de paradigma, Ama Mazama (2009:111), salienta:
A ideia afrocêntrica está a afirmativa de que nós africanos devemos operar como agentes autoconscientes, não mais satisfeitos em ser definidos e manipulados de fora. Cada vez mais controlamos nossos destinos por meio de uma autodefinição positiva e assertiva. O critério dessa autodefinição devem ser extraídos da cultura africana. Para melhor avaliar a importância da afrocentericidade, contido, é necessário examinar as circunstancias responsáveis por sua emergência. (Mazama, 2009:111).
Para exemplificar a prática da afrocentricidade, Molefi. K. Asantefaz uma apresentação de três conceitos essenciais, são eles, o conceito de agente, agência e desagência. Asante pontua que o agente, pode ser qualquer ser humano capaz de agir deforma independente em função de seus interesses. Desta forma, os intelectuais africanos ao se colocarem com promotores do renascimento africanos, são agentes desta ação.
Já a agência, segundo Asante, é a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço à liberdade humana, ou seja, os intelectuais africanos que saíram de seus países para estudar nas universidades europeias ou norteamericanas agiram sobre a ideia da agência, pois conseguiram dispôs de suas tradições culturais e psicológicas para viver em outros espaços, mas nunca deixaram de ser africanos.
A desagência é a situação na qual o africano é descartado como ator ou protagonista em seu próprio mundo. A situação de desagência é posta como os processos de escrita das histórias e experiências dos africanos pelos europeus, desde narrativas publicadas pelos colonizadores no século XV até as mais recentes obras ficcionais que descrevem os povos africanos como bárbaros e selvagens (Asante, 2009).
Destarte, dentro da africanidade, os africanos deveriam ser vistos como agentes em duas esferas de sociabilização, trocas culturais e econômicas, não apenas como receptores, ou peças figurativas no cenário histórico. Assim, Asante (2009) acentua que ao analisarmos um discurso intelectual precisamos observar que se os africanos aparecem sempre na condição de marginalizados e nunca como agentes de suas funções e interesses, provavelmente, o texto diz mais sobre o autor do que sobre os africanos.
A intensão é valorizar um tipo de história cultural em detrimento da história e cultura dos africanos. Reforçando as palavras de Asante, ChinuaAchebe (2014: 84) salienta que:
O vasto arsenal de imagens depreciativas da África que foram coletadas para defender o tráfico de escravos, se mais tarde, a colonização, deu ao mundo uma tradição literária que agora, felizmente, está extinta; mas deu também uma maneira partícular de olhar (ou melhor, de não olhara) a África e os africanos que infelizmente, perdura até os dias de hoje. Assim, apesar de os impressionantes romances “africanos”, tão populares no século XIX e início do século XX, terem rareado até praticamente acabar, a obsessão secular que revelam pelos estereótipos escabrosos e degradantes da África passou para o cinema, o jornalismo, centros ramos da antropologia e até mesmo para o humanitarismo e o trabalho missionário. (Achebe, 2014:84).
Assim, um intelectual ao colocar e analisar a história e as culturas dos africanos sobre a ótica, da dominação, escravidão e colonização, além de produzir uma desagência intelectual não afrocêntrica ajuda a propagar um modelo de análise de condições marginais, deixando à margem e na obliteração a história africana.
Molefi K. Asante enfatiza que a realidade histórica negada aos africanos promove a destruição espiritual, cultural e psicológica. Por essa razão, “o africano deve ser consciente, estar atento a tudo e procurar escapar à anomia da exclusão” (Asante, 2009:95) a fim de se tornar um agente de sua própria história.
E para tal empreendimento, o intelectual africano devese relacionar com cinco
características mínimas do projeto afrocêntrico: 1) interesse pela localização
psicológica; 2) comprometimento com a descoberta do lugar do africano como sujeito;
3) defesa dos elementos culturais africanos; 4) compromisso com o refinamento lexical;
5) comprometimento com uma nova narrativa da histórica da África (Asante, 2009:96).
As quatro primeiras características descritas, segundo Asante, precisam dialogar entre si a fim de melhor fomentar a quinta característica. O “compromisso com uma nova narrativa da história da África”, foi o elemento chave para que aos intelectuais africanos propusessem uma nova forma de reviver e reescrever a história do continente com um renascimento histórico.
Por essa razão, a célebre frase “A África tem uma história”, escrita pelo historiador Joseph Ki-Zerbo na Introdução Geral da HGA, evidencia para as comunidades acadêmicas o compromisso assumido pelos intelectuais africanos no processo do renascimento africano iniciado por Cheikh Anta Diop. E podemos ler as ideias desse renascimento proposto por Diop nas palavras escritas por Joseph Ki-Zerbo (2010:32):
A história da África, como a de toda a humanidade, é a história de uma tomada de consciência. Nesse sentido, a história da África deve ser reescrita. E isso porque, até o presente momento, ela foi mascarada, camuflada, desfigurada, mutilada. Pela “força das circunstâncias”, ou seja, pela ignorância e pelo interesse. Abatido por vários séculos de opressão, esse continente presenciou gerações de viajantes, de traficantes de escravos, de exploradores, de missionários, de procônsules, de sábios de todo tipo, que acabaram por fixar sua imagem no cenário da miséria, da barbárie, da irresponsabilidade e do caos. Essa imagem foi projetada e extrapolada ao infinito ao longo do tempo, passando a justificar tanto o presente quanto o futuro. (Ki-Zerbo, 2010:32).
Para tal empreitada intelectual, Asante pontua que existe uma diferença entre o uso das análises e metodologias afrocentrada e prática da mesma nos ambientes africanos. Segundo o autor, ser um intelectual africano não significa necessariamente que tal pessoa faz uso das metodologias de análises afrocentradas. Ele pode tranquilamente se colocar como tal, mais o que vai diferenciar as suas análises são as suas metodologias. Por sua vez, um intelectual africano afrocentrado é aquele que “valoriza as necessidades de resistências à aniquilação cultural, política e econômica” (Asante, 2009:102).
E por existir uma intensa relação entre os africanos e as histórias ancestrais nas Américas e no Caribe, devido ao tráfico negreiro, há duas possibilidades de investigação e conexões, a interna, formada pelos africanos afrocentrados que reconhecem que nasceram no continente africano, e a investigação e conexão externa, formada pelos afrodescendentes afrocentrados.
Entretanto, Asante pontua que aos brancos que nasceram e vivem em África, que nunca questionaram o sistema de opressão e dominação sobre os negros africanos, não são considerados africanos dentro das perspectivas afrocêntricas, pois para o autor “o fato de nascer e/ou residir na África, por si só, não torna alguém africano”, pois é “a consciência, e não a biologia, quem determina nossa abordagem dos dados” (Asante, 2009: 103).
Assim, como não é biológica, a afrocentricidade pode ser entendida como uma ideia que nasce junto com o indivíduo. ReilandRabaka (2009:136) sustenta que:A afrocentricidade não é uma ideologia biologicamente enviesada ou determinada, mas uma perspectiva teórica que evita a clausura epistêmica de uma posição ideológica em favor da abertura epistêmica de arcabouço filosófico genuíno. (Rabaka, 2009:136).
E foi sobre a ideia e metodologia da afrocentricidade, que na virada da década de 1980 para 1990, Molefi K. Asante e Ama Mazama, criaram o programa de doutoramento em Estudos Africanos-Americanos na Universidade Temple, na Filadélfia. Com a proposta de ampliação dos campos de estudos e análise dentro dos centros acadêmicos, a fim de propor questões do âmbito cultural, econômico, político e social considerando o povo africano como protagonista.
A ideia de construir essa agência acadêmica estava intimamente ligada ao desejo de demarcar um espaço de abordagem, a fim de evidenciar a afrocentricidade com um campo aberto de análises sem pretensões intelectuais hegemônicas, e colocar os afrocentristas como referências culturais africanas com o intuito de construir instrumentos para uma análise mais efetiva da realidade.
Uma das premissas dos intelectuais afrocentrados é que “a cultura europeia deve ser vista como estando ao lado, e não acima, das outras culturas da sociedade” (Asante, 2009: 108). Decorre desta afirmação, a resposta de Joseph Ki-Zerbo (2010:32), sobre a possibilidade de analisar a coleção HGA como um produto revanche contra as narrativas europeias sobre o continente africano.
Não se trata aqui de construir uma história-revanche, que relançaria a história colonialista como um bumerangue contra seus autores, mas de mudar a perspectiva e ressuscitar imagens “esquecidas” ou perdidas. Torna-se necessário retornar à ciência, a fim de que seja possível criar em todos uma consciência autêntica. É preciso reconstruir o cenário verdadeiro. É tempo de modificar os discursos. Se são esses os objetivos e o porquê desta iniciativa, o como – ou seja, a metodologia – é, como sempre, muito mais penoso. (Ki-Zerbo, 2019:32).
Assim, concluímos que a afrocentricidade é uma ideia que visa, acima de tudo, uma mudança revolucionária no pensamento e no descentramento e falta de agência negra. Um dos maiores desafios no campo das produções intelectuais mesmo dentro das academias africanas, visto que “a afrocentricidade surgiu em resposta á supremacia branca” (Mazama, 2009:111).
Já ReilandRabanka (2009:137) aponta dois argumentos sobre a suposta ideia de revanchismo das produções afrocentradas:
Primeiro que os afrocentristas não se opõem ao pensamento e á cultura europeia, mas questionam a imposição deles como superiores e obrigatoriamente universais. Em segundo lugar de monstruosamente incorreto afirmar que a afrocentricidade é um racismo às avessas ou um eurocentrismo pintados de preto. Ao contrário, é uma orientação metodológica e uma pedra de toque caracterizada pela abertura epistêmica e por uma postura inerentemente humanista que toma com um de seus pontos de partida o moderno movimento multicultural. (Rabaka, 2009:137).
MolefiKeteAsante e Ama Mazama, principais intelectuais afrocentrados da Universidade de Temple, argumentam que afrocentricidade foi um das grandes respostas, que vem assumindo várias formas, à supremacia branca que pode se mostrar como força bruta e violência física durante os processos de escravidão e colonização, e como força de economia e política cada vez mais vêm se impondo nos centros acadêmicos, ou como um processo mental que ocupa um grande espaço psicológico e intelectual, ou um encarceramento mental (Mazama, 2009).
E subverter essa supremacia é proporcionar e fomentar a descolonização desse espaço mental, com a finalidade de reconstruir um espaço mental africano. A ideia da supremacia branca, bem como a sua manutenção, fez em países como Brasil, frutífera e prolífera a ideia da miscigenação, do paraíso racial e a negação do racismo, sob o argumentos tais: a) como a negação da raça como uma categoria socialmente relevante, e como realidade física louvando a miscigenação para produzir indivíduos cada vez mais “claros”; b) o branqueamento da sociedade como solução para o progresso; c) a negação da existência das culturas africanas, por meio de perseguições; d) a negação dos cortes temporais e espaciais nas narrativas sobre a África no país (Mazama, 2009).
Essas negações produziram, ao longo prazo, um enorme prejuízo psicológico, histórico e social para os descendentes de africanos no Brasil, e no campo intelectual acadêmico ela ganhou forças e vozes bem aguda. Assim, com o interesse de desvencilhamento dos intelectuais afrocentrados internos, Ama Mazama (2009: 113), pontua que:
Embora se possa observa em vários dominou o efeito desse processo mental de internalizar a supremacia branca a afrocentricidade como paradigma focaliza o aspecto intelectual da questão. Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que qualquer ideia, conceito ou teoria, por mais neutro que se afirme ser, constitui o produto de uma matriz cultural e histórica particular. Como tal, é portador de pressupostos culturais específicos, frequentemente de natureza metafísica. Assim, abalar uma teoria ou ideia europeia não é, como pode parecer, um inocente exercício acadêmico. (Mazama, 2009:113).
Deste modo, seria necessário, fazer um reexame dos processos das construções da supremacia branca, para construir paradigmas afrocentrados que possam dialogar com as experiências dos intelectuais afrocêntricos externos e internos em referência ao continente africano. Caso isso não seja possível, os africanos serão facilmente engolidos pelas ideias da supremacia intelectual branca na academia, guiados sobre o complexo de dependência colonial.
Assim, ReilandRabaka (2009:134) pontua que a afrocentricidade é ao mesmo tempo uma crítica e um corretivo à imposição do padrão europeu de vida e consciência humanas como obrigatoriamente universal. Para além da proposta conceitual e metodológica, a afrocentricidade, ganhou corpo e vozes quando se tornou uma inovação disciplinar nos estudos Africana.
Desta forma, as fronteiras disciplinares, nos estudos Africana enternecem-se, proporcionando espaços para uma abordagem extensiva e multidisciplinar, que passa a dialogar com as ciências sociais, ciências da natureza, artes e humanidades, cuja “teoria crítica envolve não apenas a crítica da dominação e da discriminação, mas também um profundo compromisso com a libertação humana e a transformação social permanente” (Rabaka, 2009: 141), voltada para ênfase nas contribuições africanas continentais e diaspóricas.
Desta forma, a teoria crítica Africana está voltada para uma inerente orientação metodológica afrocêntrica que ilumina e acentua teorias filosóficas africanas nascidas das resistências (Rabaka, 2009:141). Atravessando e transgredindo as fronteiras entre as disciplinas tradicionais, acentuando as interconexões e interações no espaço acadêmico. Ao propormos uma brevíssima análise histórica e desenvolvimento da construção do conceito de afrocentricidade, no primeiro capítulo, buscamos não desconectar que as raízes do conceito foi o movimento negro dos anos de 1960, inspirado nas teorias e ativismos social e político do Direito Civis e do Poder Negro, bem como nas teóricas pan-africanistas e africanos coloniais (Rabaka, 2009).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao logo de nossas explanações, procuramos evidenciar queo movimento de reescrita da história da África, no século XX, têm raízes muito profunda nos conceitos de afrocentricidade e Africanas desenvolvidas pelos intelectuais afro-americanos no século XIX. Por essa razão, ao longo do nosso trabalho procuramos tentar estabelecerdiálogos entre as principais ideias dos escritores afro-americanos e africanos que vêm utilizando o mote africanista afrocentrado. Os estudos sobre os desenvolvimentos da historiografia Africana voltados especificamente para as análises dos historiadores africanos, ainda são pouco conhecidos no Brasil, pois além dos entraves gerados pelas questões linguísticas, pois muitos autores afrocentrados estão escrevendo e publicando nas línguas nativas, a identificação e aceitação do tema, por parte dos programas de pós-graduação, sem a conexão direta com autores europeus, ainda são muito tímidas. Quando dizemos timidamente é porque, por mais que alguns programas de pós-graduação tenham em seu corpo docente cadeiras especificas sobre a História da África e, em seu corpo discente um número significativo de pós-graduando que se debruçam sobre o tema, a questão posta é em relação às fontes e metodologias utilizadas para as composições das pesquisas dentro e fora dos espaços acadêmicos de cunho afrocentrado, ou seja, que leve em consideração primeiro as produções, epistemologias e metodologias desenvolvidas pelos intelectuais africanos. Assim, o anseio principal deste trabalho, que não está totalmente fechado, é lançar sementes que possam frutificar em canteiros interdisciplinares para que possam germinar em como novas propostas de trabalhos e investigações históricas.
REFERÊNCIAS:
ACHEBE, Chinua. A educação de uma Criança sob o Protetorado Britânica. tradução Isa Mara Lando – São Paul: Companhia das Letras, 2012.
ALDRIDGE, Dolores P.; YOUNG, Carlene(Orgs) Out of the revolution: the development of Africana Studies. Nova York: Lexington Books, 2000.
ASANTE, Molefi K. Afrocentricity:the theory of social change. Buffalo, NY: Amulefi Press, 1980. ______. The Afrocentric idea. Filadélfia: TempleUniversity Press, 1998. ______. Afrocentricidade: Notas sobre uma Posição Disciplinar. In:
NASCIMENTO, Eliza Larkin (org). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora.São Paulo: Selo Negro, 2009.
CHANAIWA, D; KODJO.E. Pan-africanismo e libertação. In: MAZRUI, A. A,; WONDJ, C.(Ed). A África desde 1935. 2ª ed. Ver. Brasília: UNESCO, 2010. FINCH III, Charles S.; NASCIMENTO, Eliza Larkin. Abordagem Afrocentrada, História e evolição. In: NASCIMENTO, Eliza Larkin (org). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. ______. Cheinkh Anta Diop Confirmando. In_ NASCIMENTO, Eliza Larkin (org). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora.São Paulo: Selo Negro, 2009. HEGEL, J. G. F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Tomo I. 3ª ed. Buenos Aires: Revista de Occidente, 1946, p. 183-203.
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I, Lisboa: Publicações Europa-América. 2002. ______. Introdução. In: Id. (Ed.). História Geral da África, I. Metodologia e Pré-História da África. Brasília: UNESCO, 2010.
MAZAMA, AMA. A Afrocentricidade como um novo Paradigma. In: NASCIMENTO, Eliza Larkin (org). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.
RABAKA, Reiland. Teoria Critica Africana. In: NASCIMENTO, Eliza Larkin (org). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. TRINDADE, AzoildaLoretto da. O projeto pedagógico na escola: aplicação da lei 10.639. 2.ed. ver. E atualizada.- Rio de Janeiro: CEAP, 2010.
Comments